maio 28, 2011

Holanda: pioneira esquecida da democracia liberal


Um fato pouco enfatizado pelos cientistas políticos modernos é a importância da constituição dos Países Baixos, elaborada no fim do século XVI, para a formação do pensamento liberal desenvolvido na Inglaterra no fim do século XVII e consolidado nos EUA no fim do século XVIII. Destacar esse episódio é outro ponto forte do livro Perfecting Parliament, de Roger Congleton.

Ele lembra que em 1464, o Duque de Borgonha instituiu um sistema de governo inteiramente novo para os seus domínios no delta do Reno, que exigia a colaboração entre assembleias regionais e um único governador nomeado para toda a região, já então uma das mais urbanizadas e ricas da Europa.

Treze anos depois, em guerra contra a França, sua herdeira negociou um ‘Grande Privilégio’ com essas assembleias regionais, em troca de seu apoio nesse conflito. Estas ganharam, assim, não só poder de veto sobre todas as decisões relativas a taxação e guerra, como também o poder de se autoconvocarem independentemente de permissão superior.

Quando, no fim do século XVI, tornou-se inevitável o conflito entre as elites locais e os Habsburgos, que haviam adquirido o domínio sobre a região através de casamentos e heranças, as sete províncias do norte do delta criaram uma aliança de defesa mútua contra a Espanha, que resultou, em 1581, na declaração de independência holandesa.

É impressionante verificar como a teoria de direitos naturais e a defesa de um governo limitado, constantes dessa declaração, ressurgem nos argumentos desenvolvidos por John Locke nos seus Dois Tratados sobre o Governo, de 1689, e nos termos usados por Jefferson, Adams e Franklin na Declaração de Independência dos EUA, de 1776.

A simples leitura desses textos revela como os ingleses do século XVII e os norte-americanos do século XVIII são descendentes intelectuais diretos dos holandeses do século XVI.

maio 17, 2011

O desenvolvimento da democracia no Ocidente


Perfecting Parliament, de Roger D. Congleton, professor de Economia e Ciência Política da George Mason University, é um livro bastante denso, de leitura nada fácil, mas muito informativo e perspicaz. Ele oferece uma explicação bastante convincente para a democratização do mundo ocidental, caracterizada pela transição de poder dos reis para os parlamentos e pela crescente universalização do sufrágio para a escolha dos parlamentares.

Segundo Congleton, essa mudança não resultou, como se imagina, de uma súbita transformação de governos autoritários em democráticos, forçada por revoluções ocorridas desde o fim do século XVIII. Ao contrário, ela se deu por uma lenta evolução que vem se processando desde a Alta Idade Média, através de uma longa série de reformas constitucionais liberalizantes, barganhadas entre os reis e seus súditos em vários países ocidentais.

Nenhuma revolução conhecida instaurou um governo democrático. Isso é particularmente verdadeiro no caso da França, onde a emergência de uma democracia liberal somente se iniciou após a queda de Napoleão III e teve um caráter eminentemente evolucionário. Em casos de guerras de independência, como na Bélgica e nos EUA, os novos governos se basearam em sistemas políticos relativamente democráticos pré-existentes nos seus territórios. Em nenhum caso, a democracia parlamentar surgiu de um único grande salto constitucional.

O gabarito de governo clássico, tão antigo quanto a humanidade e praticamente universal, do qual surgiu a democracia parlamentar, consiste em ‘rei-e-conselho’. Vários tipos de governo, desde ditaduras até democracias representativas, cabem nesse gabarito, dadas suas múltiplas alternativas para a divisão de autoridade entre o rei e o conselho e para o processo de escolha dos conselheiros. Para Congleton, a evolução do sistema rei-e-conselho, até chegar a uma democracia parlamentar, resultou da interação entre os novos interesses econômicos surgidos desde a Alta Idade Média e as instituições políticas pré-existentes. 


Nos próximos posts, veremos alguns exemplos interessantes dessa evolução.

maio 05, 2011

O desastre da democracia direta na Califórnia


O post anterior comenta a reforma constitucional efetuada pela Califórnia, em 1911, através da qual o eleitorado recebeu o poder de aprovar leis independentemente da assembleia estadual.

Essa dose de democracia direta não produziu muito efeito na primeira metade do século XX. Até os anos 60, poucas leis, e não muito importantes, foram votadas diretamente pelo eleitorado da Califórnia. Mas as coisas mudaram a partir de 1978, com a aprovação da Proposição 13, uma reação dos eleitores ao forte aumento do imposto equivalente ao nosso IPTU, causado pela valorização imobiliária ocorrida em todo o estado.

Essa proposição determinava uma redução imediata desse imposto - de 2,6% para 1% do valor estimado do imóvel - e, além disso, limitava o seu aumento no futuro. Com a sua aprovação, em 3/6/1978, cortou-se pela metade a receita dos municípios californianos, que passaram a depender de subsídios do estado para cobrir suas despesas com escolas, hospitais e aposentadorias.

A partir de então, muitos grupos de interesse acordaram para a possibilidade de obter benefícios assegurados por lei, através da manipulação do eleitorado. O número de proposições colocadas em votação direta passou de 9 a 74, entre a década de 1960 e a de 2000. A coleta de assinaturas em apoio de novas proposições transformou-se numa indústria. Firmas especializadas nessa tarefa hoje pressionam eleitores encurralados em locais concorridos, que sem entender o que fazem assinam essas listas, depois vendidas ao grupo beneficiado.

Ao longo desse processo, os candidatos à assembleia estadual passaram a depender das contribuições de patrocinadores interessados em obter benefícios fiscais do estado, a fim de financiarem campanhas eleitorais cada vez mais caras. É fácil, para os deputados eleitos, satisfazer esses patrocinadores, pois aprovar um favor fiscal exige maioria simples. Mas aumentar impostos, desde a Proposição 13, exige maioria de 2/3.

Resultado: o estado está literalmente falido, sem perspectiva de solução por deliberação da assembleia. Enquanto isso, nos índices mais representativos de qualidade na educação, a Califórnia, o mais rico entre os 50 estados dos EUA, encontra-se entre a 42a e a 47a posição. O problema atingiu um ponto tal que várias mudanças na constituição estadual encontram-se em estudo, a fim de devolver ao legislativo estadual o poder de debater, modificar e substituir as leis aprovadas diretamente pelo eleitorado.